09 outubro, 2011

A Costureira



Eu já escrevi várias vezes este texto mas apaguei porque este livro é tão bom que todos os meus textos seriam insuficientes para descrevê-lo. Então, depois de escrever e apagar um monte de vezes, resolvi que o melhor é começar do começo e ser honesto.
Vamos ao começo:
Como eu conto neste post, eu estava em Munique, acordei bem cedo, tomei banho, dispensei o café da manhã e ajustei o GPS do carro para Dachau.
Dachau é uma cidadezinha perto de Munique, o acesso pode se dar pelos subúrbios ou pela autobahn que passa ao lado do estádio Allianz, um dos estádios mais bonitos do mundo.
Após contornar o estádio, peguei uma saída que leva a uma estradinha com poucas curvas cercada de árvores altas, a paisagem típica da bavária. Depois de algum tempo seguindo as ordens do GPS lá estava o muro cinza com arames farpados. O monstro de concreto no meio do paraíso bávaro, a grande aberração nazista fincada no meio do pacato vilarejo.
O inferno de Dante tem, na entrada, os seguintes dizeres: "Deixai de fora as esperanças, vós que entrais", o inferno Nazista tem "Arbeit macht frei", ou em bom português: "Libertação Pelo Trabalho", logo na entrada ficou evidente que o demônio humano é mais vil que a besta-fera bíblica.


Dentro do campo, um festival de horrores, aquele lugar é uma aula de história e uma grande vitrine da natureza humana, exposta com suas vísceras fétidas. É um choque tão grande que faz uma pessoa como eu, anti-belicista desde sempre, querer pegar em armas e lutar contra este tipo de gente. Eu ficava tentando entender aquela maldade, onde foi parar a bondade? Onde estavam as pessoas de bem enquanto isto aqui acontecia?
Lembrei de uma citação que um grande amigo da lei fala sempre: "Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados"
Depois de ver uma foto de Sara Tuvel, junto a um trecho de seu livro, resolvi que ia comprá-lo para tentar entender o que foi aquilo.


O livro é sem dúvida o melhor que já li na minha vida, mostra a vida da menina linda que respirava liberdade, fazia o que tinha vontade e lutava pelo que queria. Tão feliz da vida e sem mais nem menos teve seu mundo destroçado pela insanidade que começou com uma perseguição religiosa e terminou com uma guerra mundial. Sim, as religiões cristãs têm grande responsabilidade nestes crimes.
Mas voltando à pergunta não respondida, onde estava a bondade quando esta maldade assolava o mundo? Onde estavam as pessoas de bem?
Estavam bem ali, no meio disto tudo. A bondade estava nestas meninas virando adultas para sobreviver, dividindo um miolo de pão para não deixar suas amigas morrerem de fome.
É o equilíbrio da natureza humana, onde há uma maldade exorbitante tem que haver uma bondade exorbitante. Porquê? Porque somos assim, bondade e maldade. Uma dicotomia.

Traduzo abaixo alguns trechos do livro para que Sara fale por si:

Antes da guerra, aos 13 anos Sara é expulsa da melhor escola do país por reagir ao preconceito, atirando um vidro de tinta no padre:
"Eu juntei minhas roupas, enfiei em uma mala e caminhei para o centro de Bucareste. Voltar pra casa nunca passou pela minha cabeça. A vila não tinha nada a me oferecer e eu não podia suportar o pensamento de ficar tomando chá enquanto esperava pelo homem perfeito me pedir em casamento. Aqui estava eu, na capital da Romênia, a "Pequena Paris". A idéia de me tornar aprendiz de costureira de vestidos invadiu minha mente.
Nenhuma das minhas irmãs saíra de casa para trabalhar. Eu vou ser a primeira! decidi."

Sara acabou se tornando costureira da família real da Romênia

"Eu adorava trabalhar ali, como era bom poder andar por aquelas ruas sofisticadas. Aprendi como é prazeroso ganhar seu próprio dinheiro e gastar em seus próprios prazeres. Frequentar jantares e salões de dança "

Muitos anos depois, já durante a guerra, as amigas a convidam para trabalhar com elas em uma fábrica de lingerie em Budapeste
"_Vocês fazem a mesma coisa dia e noite, sem completar nada?
_Sim
_Eu sou uma costureira de vestidos, não uma máquina.
_Você se acostumará.
_Não, nunca! Eu preciso de variedade. Eu vou morar com vocês mas eu mesma vou encontrar meu trabalho.


Enquanto trabalhava na força de trabalho feminina (escravas cavando trincheiras) e os homens da força de trabalho ao lado começaram a chamar pelos nomes das suas parentes/ amigas.
"Toda noite eu pensava, -ninguém chama por mim. Nem uma só pessoa. Será que alguém se lembra de mim? Ninguém?
Talvez hoje à noite alguém chame meu nome - voltei ao trabalho esperançosa.
Eu ouvi "Seren Tuvel" saindo do turbilhão de vozes. Não - eu pensei - Foi algum outro nome parecido com o meu. "Seren Tuvel...Seren Tuvel" Era meu nome! Eu queria pular e correr para descobrir quem estava chamando por mim. Era Joseph Tuvel, a última pessoa que eu esperava ouvir. Dormi pensando em Joseph, Eu achava que eu não era nada pra ele além de uma tia velha. Mas ele me chamou! Eu nunca esqueceria. Oh eu nunca esqueceria.

Por toda a guerra, Joseph carregou dentro de seu sapato a foto de Sara que ilustra a capa do livro.

Primeiro dia no campo de concentração:
"A imagem daquela pilha de corpos congelados no frio, sob a luz acinzentada, nunca me abandonou. Eu não estarei nesta pilha, eu decidi então. Eu não vou morrer. De qualquer forma, e da maneira que eu puder, eu vou permanecer viva; Esther, Ellen e Lilly também. Enquanto eu tiver forças nós viveremos. Eu cuidarei disto."


Vida ou morte, quase a mesma coisa
Se tornou cada vez mais evidente que não havia meio termo em Ravensbrück. Só eram oferecidas duas opções: viver ou morrer. Se você não se levantasse da cama às quatro da manhã quando um guarda vinha gritando”Levantem, porcos judeus preguiçosos!” se você ficava em um estado semi sonolento porque durante a noite seu corpo havia sido atacado por hordas de piolhos, se seu sistema inteiro estava tão exausto por ataques de diarréia ou vômito que você não podia se levantar por você mesmo e se juntar às filas de contagem, você tinha escolhido a morte estivesse você ciente disto ou não.


Mulheres queimadas vivas no crematório
Quando os guardas SS atiravam corpos em caminhões, um por um, às vezes uma mulher que estava sendo carregada gritava ou uma mulher da pilha de corpos erguia a mão, seus dedos se levantavam no ar e depois caíam. Algumas ainda estavam vivas! Os SS, no entanto, não reconheciam a doença. Se você se levantava e ia trabalhar, você estava vivo. Se você não se levantava, você estava morto.


Quando elas são resgatadas
Um soldado americano me carregava em seus braços. Eu fechei meus olhos. Gotas de água começaram a bater em minhas bochechas, escorrendo por meu pescoço. Está chovendo de novo? Eu pensei. Não, estamos dentro, não deveria chover aqui. Então eu me dei conta de que o soldado que me carregava estava chorando, suas lágrimas batendo em minha face.
Gentilmente ele me pousou em lençóis limpos e brancos, cheirando a sabão e amaciante, em um travesseiro tão macio, e me cobriu com um cobertor quentinho. Oh meu Deus! Eu morri e fui pro céu, eu pensei.


O depoimento da filha de Sara, muitos anos depois

Ninguém conseguia ficar infeliz ou deprimido perto dela, seu otimismo destruía qualquer depressão.
Uma das qualidades que faziam minha mãe diferente, senão única, era sua habilidade de dar uma risada real e desinibida, sua capacidade de viver o prazer e a alegria.
Ela sempre me ensinou: esteja preparada, sempre planeje adiante, antecipe, esteja pronta, não dependa de ninguém além de si mesma, seja observadora.





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